A recente publicação da The Lancet Regional Health destacando o Rio de Janeiro como um dos melhores exemplos globais de resposta a surtos recoloca no centro do debate uma estratégia que mudou a história da saúde da cidade: a expansão em larga escala da atenção primária.
Para o médico e gestor Hans Dohmann, responsável pela transformação da rede de saúde do município entre 2009 e 2014, quando era secretário de saúde, o reconhecimento é mais do que um mérito institucional: é a validação de uma política pública baseada em ciência, dados e cuidado territorial.
“A força do enfrentamento a epidemias não começa nos hospitais, começa perto da casa das pessoas. A atenção primária é o verdadeiro radar epidemiológico da cidade”, afirma.
O modelo que mudou o mapa da saúde carioca
Nos últimos anos, a cidade do Rio de Janeiro atingiu resultados inéditos em atenção primária. No primeiro quadrimestre de 2025, a cidade alcançou nota 8,58 no Indicador Sintético Final (ISF) do programa Previne Brasil, a maior entre todas as capitais brasileiras.
Dados reunidos pelo estudo mostram que a cobertura da Estratégia Saúde da Família no Rio passou de cerca de 3,7% em 2008 para cerca de 45% durante a gestão de Hans Dohmann, atingindo mais de 70% em 2016 e batendo a marca de mais de 80% em 2024, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde.
Para Dohmann, esses números explicam boa parte da capacidade da cidade de responder mais rapidamente a surtos.
O impacto também se deve à combinação entre capilaridade do cuidado, acompanhamento contínuo das famílias e equipes multiprofissionais capazes de identificar sinais precoces de transmissão.
“A atenção primária é onde tudo começa”, afirma. Ele explica que equipes de saúde presentes nos territórios funcionam como sensores epidemiológicos, capazes de reconhecer padrões, mudanças de comportamento e sinais precoces de transmissão. “Quando você conhece cada família, cada microárea, a informação chega antes da crise. Isso é o que evita que um aumento pontual de casos se transforme em uma epidemia descontrolada.”
Evidências e pesquisas que sustentam o modelo carioca
Diferentes estudos corroboram a eficácia do sistema que transformou o Rio em case internacional. Um artigo publicado recentemente sobre os 15 anos de reforma da atenção primária na cidade mostra que os usuários relatam melhorias no acesso, na qualidade do atendimento e na resolutividade clínica.
Além disso, a criação de ferramentas como o EpiRio, observatório epidemiológico que reúne dados em tempo real, permitiu que fluxos de vigilância fossem aprimorados e que gestores tivessem maior capacidade de prever cenários.
Segundo Dohmann, esses avanços demonstram que o modelo carioca não depende exclusivamente de grandes investimentos, mas sim de organização, territorialização e continuidade. “Se você espera pelo hospital para entender o que está acontecendo, já perdeu a corrida. A informação relevante está lá na ponta, no agente comunitário que observa a rotina da comunidade.”
Por que o mundo presta atenção ao caso carioca
A publicação na The Lancet reforça que o modelo implementado na capital fluminense criou um ecossistema robusto, capaz de reduzir internações, detectar surtos com antecedência e aumentar a resolutividade da rede.
Especialistas internacionais apontam que o exemplo brasileiro é especialmente relevante para grandes cidades com desigualdades socioeconômicas e desafios logísticos complexos.
Dohmann resume a lição: “O que o Rio mostrou ao mundo é que políticas públicas consistentes, quando bem implementadas, transformam realidades e salvam vidas, não por acaso fomos reconhecidos internacionalmente.”
O futuro da saúde e a expansão do modelo
Para Dohmann, o modelo adotado no Rio deve se expandir nos próximos anos para outras regiões do país, especialmente por meio de soluções híbridas que combinem tecnologia e equipes territoriais. A aposta, diz ele, está na integração entre saúde digital, telemonitoramento e vigilância de risco.
Ele prevê que iniciativas de gestão populacional, aquelas que acompanham grupos de risco e utilizam dados para prever necessidades, se tornarão o eixo central da política pública e do setor privado. “Se conseguimos fazer isso no Rio, uma cidade desigual, extensa e cheia de desafios urbanos, é porque a lógica funciona. A atenção primária não é o futuro da saúde: é o presente, e o mundo está reconhecendo isso.”
Sobre Hans Dohmann

Hans Dohmann é médico, mestre pela UERJ e doutor pela UFRJ, reconhecido por sua pesquisa pioneira em implante de células-tronco e sua formação em gestão por instituições como Coppead/UFRJ, Johns Hopkins, Harvard e McMaster.
Foi secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro entre 2009 e 2014, liderando a maior expansão da atenção primária da cidade. No setor privado, atua em saúde digital e gestão populacional e é diretor médico do Hospital Virtual Verde.
